quarta-feira, 20 de dezembro de 2006

Legitimidade real (em forma de desabafo pessoal)

Considere-se o seguinte: numa sociedade que se quer justa e regida pelos princípios da igualdade e da liberdade, como encarar o direito de sucessão de uma família à chefia do Estado? Certamente que muito mal. A titularidade de cargos nacionais deve depender do mérito pessoal e não de relações de parentesco, deve ser algo público e não propriedade privada. O que deixa numa posição desconfortável a defesa de uma monarquia, mais ainda se considerarmos a importância de nos aproximarmos de uma méritocracia contra um sistema que funcione com base em cunhas, favores, filiação partidária ou simples "contactos". E como o exemplo deve vir de cima...

Como legitimar, então, o direito a um trono?

Considere-se esta ideia: uma monarquia faz pleno sentido numa sociedade que tenha presente ou pelo menos esteja familiarizada com a veneração dos antepassados. Porquê? Porque ela mantém constantemente em memória uma forma de maior ou menor valorização da linhagem do indivíduo. Uma pessoa nem tem que praticar ou sequer acreditar em qualquer forma de culto dos mortos da família, mas basta ser uma ideia culturalmente enraizada para poder enformar comportamentos e mentalidades. A título de exemplo, veja-se o que sucede no ocidente com a separação entre Estado e Igreja: a sua fundamentação teórica deriva, primariamente, de uma passagem biblica (Mateus 22:21), mas daí não se conclui a crença religiosa dos defensores do laicismo, que muitas vezes é nenhuma.

Por esse motivo a Casa Imperial do Japão reveste-se de uma forma de legitimidade dificilmente encontrada no ocidente, uma vez que a cultura japonesa tem uma tradição milenar de veneração dos antepassados que persiste ainda hoje e está presente mesmo quando não se é xintoísta. O soberano é legítimo por ser descendente do primeiro imperador, é o símbolo vivo da nação por traçar a sua linhagem até ao seu fundador, do mesmo modo que um indivíduo seria responsável pela preservação de uma tradição artística ou marcial por ser descendente do seu criador. Ao herdeiro cabe a responsabildade de honrar os seus avós e o que de bom eles fizeram, de ser a face visível da sua memória e de velar pela continuidade daquilo que eles lhe deixaram. Provavelmente também por esse motivo algumas antigas culturas europeias que se orgulhavam de não ter reis mantinham, ainda assim, cargos cerimoniais que entregavam a pessoas cuja linhagem legitimava a sua titularidade.

Talvez eu esteja a postular uma coisa que no ocidente de hoje não tem solo onde ganhar raízes. E talvez todo este raciocínio faça sentido para mim por eu estar familiarizado com o culto dos antepassados, fruto de muitos anos de leituras sobre culturas antigas. Quem se dá ao trabalho de ler isto que contra-argumente.

5 comentários:

Anónimo disse...

Não é preciso.
A sua bandeira «neo-monárquica» já diz tudo.
Saúde e haja Deus.

O Corcunda disse...

Caro Portucalense,

Permita-me que lance uma questão. Porquê então o culto dos antepassados? Porque é que isso não é uma afronta ao laicismo?
Os mortos estão mortos, para quê cultivá-los se não for para uma prática religiosa?
Não se percebe...

Se não gosta de Cristo, ou da Igreja, ou de Portugal ficamos assim. Pode continuar a olhar para as monarquias da História e escolher as coisas que mais o fascinam numas e noutras. Mas porque é que acha que é Portugal e os seus valores intemporais a submeter-se à sua Vontade e não o contrário?

Portucalense disse...

Eu não sugeri um culto dos antepassados. Aliás, até fiz questão de dizer que não é preciso praticá-lo ou acreditar nele para uma sociedade que o tem presente se deixar enformar por alguns dos seus aspectos, tal como a sociedade laica ocidental não passa a ser religiosa por o laicismo ter a sua raíz primária numa referência biblica. Há hábitos mentais e produtos ideológios que sobrevivem ou se separam da sua origem.

Em todo o caso, nestas férias de Natal tomei mais algumas notas que irei pôr aqui e que poderão iluminá-lo um pouco mais. Publicá-las-ei juntamente com as respostas às suas perguntas.

Um bom Natal (atrasado)

Anónimo disse...

Este é capaz de ser o blog mais peculiar que já conheci.

SRA disse...

Que grande trapalhada!
Culto dos antepassados - suponho que da tradição e da história - mas a par a negação de que este culto seja a espinha dorsal do Estado. Enfim, as tradições são bonitas, há que guarda-las para não estragar o bolo. Mas o Estado que, para o Portucalense, é público - esta do Rei eleito é outra coisa que não percebo, ou não fosse isso a degeneração da monarquia na oligarquia - não pode aceitar como enformadora a sua própria história. Tem de ser muito à moda do Agostinho da Silva: tudo e nada ao mesmo tempo, pois só sendo nada se pode ser tudo pela ausência da contradição ao tomar partido. Estranho é que o Estado laico toma partido pela laicidade que é, em si, uma visão singular das sociedades. É uma contradição pegada!
O que o Portucalense quer é uma ditadura laicista e republicana coroada de um pouco de tradição... mas não muita!